Relatos de um (quase) ex-misofônico – 1
Duas fotos, dois momentos*
O primeiro momento, à esquerda, estava na apresentação de Natal da turma de Alfabetização, na escola onde iniciei meus estudos. Neste dia estava com febre e com a garganta inflamada. Eram dias que vivenciei uma infância alegre, tranquila e bastante ruidosa, como deveria de ser.
No segundo momento à direita, já havia se passado pouco mais de quatro meses desde a primeira foto. Estava no pátio externo de minha casa, registrando numa brincadeira, como eu reagia quando assobios me incomodavam. Essa foto foi um registro, cerca de vinte dias, após manifestar sintomas de incômodos auditivos a sons específicos.
(*) Este texto foi originalmente publicado no Grupo de apoio [Misofonia – Síndrome] (10/04/2019), depois adaptado para o site antigo (18/04/2019) e agora foi readaptado para atualizar alguns detalhes que não constavam nas publicações anteriores.
O início
Em março de 1977, cerca de um mês após completar os sete anos, passei por um procedimento cirúrgico para extração das Amígdalas. Desde muito cedo elas inflamavam com frequência e eu era acometido por episódios de febre de trinta e nove graus (39 ºC), insistentes e que ocasionalmente me causavam um delírio desagradável, como se sentisse o atrito causado pela textura de alguns objetos passando por dentro de minha cabeça.
A cirurgia foi prescrita pelo pediatra que me atendia e realizada no Hospital da Beneficência Portuguesa. Antes da cirurgia, na enfermaria, pude conversar com outra criança que também ia passar pela mesma cirurgia e haviam outras que estavam internadas por diversos motivos. Todos os pais e enfermeiros repetiam que no dia seguinte eu já estaria bem e poderia tomar sorvete. Então entrei na sala de cirurgia e 3 segundos após a anestesia geral, apaguei.
Acordei saindo da sala de cirurgia, com sangue na boca e nariz e passei à noite na enfermaria. No dia seguinte fui pra casa, não conseguia comer nada e todos os sons estavam doendo nos ouvidos…fiquei um mês assim, até que os sons pararam de doer e a inflamação cedeu. Contudo comecei a perceber que em duas situações eu sentia um incômodo: o assobio do meu irmão e um som que eu nunca tinha percebido antes, o de limpar os dentes por sucção ou simplesmente – chupar os dentes.
Outras pessoas que conheci e que também passaram por esta cirurgia, não relatavam um período de recuperação tão complicada. Naquela época, ficavam em casa por um período breve e pronto. Contudo, não conheci ninguém que tomou sorvetes um dia após extrair as amígdalas. Eis aqui uma breve análise sobre como tenho lidado com Misofonia – gatilho a gatilho, considerando as hipóteses que venho estudando e são citadas nos mais diversos estudos acadêmicos sobre Misofonia e é claro, a minha percepção sobre cada gatilho considerando sua evolução em mim desde o início.
Para os estão conhecendo Misofonia agora, Gatilho – é um som específico que inicia, de forma exagerada, as respostas aversivas como angústia, raiva, ódio e outras emoções negativas. Eu nunca cito que é um “barulho”, pois na minha percepção isso confunde com Hiperacusia, que depende mais da intensidade ou da tonalidade do som.
⚠️ AVISO – A PARTIR DE AGORA VOU FALAR COM DETALHES SOBRE GATILHOS ⚠️
Algumas pessoas relatam que ao ler sobre determinado gatilho, começam a se sentir incomodados por ele. Então caso você não goste de ler sobre gatilhos pule este texto até o tópico: Minhas considerações.
Os gatilhos
Assobio ou assovio.
Foi o primeiro gatilho que pude perceber. Causa em mim, a aversão descrita nos relatos sobre misofonia, mas também um incômodo físico no ouvido direito. Estou com suspeita de Deiscência no canal superior Direito, ou seja, o canal superior da cóclea entrou no osso do crânio. Como os ossos do crânio também captam ondas sonoras, o assobio pode transmitir vibrações ao dito canal. Fora isso, quando comecei a sentir aversão a assovios, ainda tive meu irmão mais velho assobiando, o que me traumatizou ainda mais, acentuando o sofrimento e me condicionando negativamente, pois emitia um assobio agudo e intenso que ele fazia, achando que eu estava apenas me aproveitando para ter mais “mimos” das pessoas próximas. Isso tudo me torturava muito, mas ele não tinha consciência do que se passava dentro de mim.
Essa experiência negativa com meu irmão é consistente com uma hipótese que fui encontrando em pesquisas, como uma das causas da misofonia: um processo de condicionamento ou um reflexo condicionado a uma situação traumática.
Poderia explicar que em muitos relatos é citado o início dos incômodos durante as refeições, com a família à mesa, principalmente na infância. No meu caso, foi muito traumático, pois a inflamação que se seguiu após a cirurgia causou dores na garganta, ouvido e me fez passar dias na cama, pois qualquer som em qualquer intensidade me incomodava. Depois de um mês o que incomodava eram sons específicos que foram potencializados pelo meu irmão. Aí temos, também, espaço para suspeitar de Estresse Pós-Traumático. Mas eu estava no mundo de 1977… quem poderia diagnosticar isso?
Hoje, Perturbação de estresse pós-traumático (PSPT) (português europeu) ou transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) (português brasileiro) tem diagnóstico e tratamento e há vários estudos que o relacionam com Misofonia.
A suspeita levantada junto a otorrino que me atende desde 2017 é que a inflamação pós cirúrgica tenha alterado momentaneamente funcionalmente algumas estruturas do ouvido médio e interno e com isso a proteção contra ruídos altos. Pode explicar a Hiperacusia que me afetou cerca de um mês até a inflamação ceder. Pode ainda ter iniciado um comprometimento no canal auditivo superior.
Sons de mastigação e sugar os dentes
A hipótese que esteja, em mim, relacionada a TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo. O tratamento de TOC com TCC – Terapia Cognitiva Comportamental está diminuindo a percepção e a reação a este gatilho. Observando meu histórico, quando aos sete anos comecei a perceber que sons de chupar dentes me afetava, busquei um livro e comecei a rasga-lo a parte superior de cada folha. O rasgo era proporcional ao incômodo, tipo: chupadas rápidas eu rasgava menos de um centímetro; as “rasgadas mais profundas” eram proporcionais ao som mais prolongado. Curiosamente, em função da numeração das páginas do livro e no ritmo que as pessoas ao meu redor produziam esse gatilho, comecei a contar quantas vezes eu percebia o som gatilho.
Foi o início de contar as “coisas” em outras situações, como os postes que eu via na estrada durante uma viagem ou os passos que eu realizava até um destino. E quando começava, não conseguia parar, ficava numa ansiedade e precisava continuar a contar. Então toda vez que alguém “chupava os dentes”, eu já estava contando e esperando o próximo. Depois comecei a me incomodar com chupar quase tudo, de ossos, sopa a espinhas de peixe e, por último a mastigação de boca aberta.
Vale dizer aqui que antes disso nem percebia que as pessoas chupavam dentes. É como se fosse um som novo no mundo, para mim. O pior é que as pessoas o fazem sem perceber, pois, na maioria das vezes, é automático.
Então no meu caso, para esses gatilhos, as estratégias de lidar com TOC vem diminuindo o incômodo. Atualmente quase não percebo sintomas similares a TOC.
Sons de lixar superfícies
Estes sons não causam aversão como os outros, mas uma sensação que a lixa está atuando no meu tecido esponjoso cerebral. É a única forma que consigo ilustrar (rsss). Claro que isso atrapalha minha atenção. É interessante que esta sensação era similar à que sentia durante os episódios de febre delirante. isso antes da cirurgia e da Misofonia. A febre delirante terminou, mas a Misofonia começou. Esse é o único gatilho que ainda não tenho solução ou tratamento. De repente é um efeito ASMR ultra exagerado. ASMR é a resposta meridiana sensorial autônoma, pois, ao contrário de quem sofre por causa da Misofonia, alguns sentem um prazer “arrepiante” ao ouvir alguns sons, como os de pessoas sussurrando.
Sons percutidos ou batidas de modo geral
Consegui superar esse gatilho com controle emocional de ansiedade e habituação, TCC e Acupuntura. Os sons percutidos que mais frequentemente ouço é o das pessoas batucando nas mesas enquanto trabalham, sons de passos no teto, canetas com ponta retrátil sendo acionadas, teclados, etc… Nenhum deles me afetam mais. Então para este gatilho considero que houve uma “cura” total.
Barulhos de modo geral
Eu só chamo de barulho um som ou ruído em alto volume. Desde que não sejam nenhum dos gatilhos acima, não me incomodam dentro dos limites que meu sentido da audição pode suportar ou dependendo da atividade que esteja realizando. Ou seja, não sofro de HIPERACUSIA atualmente. De qualquer forma, eu evito ambientes muito ruidosos por muito tempo, para não piorar os problemas auditivos e ser mais um ponto de estresse na hora de reagir a um gatilho. Então não serei encontrado, espontaneamente, em show com caixas acústicas despejando toda a sua potência sonora.
Zumbidos (Tinittus)
Percebo 4 tipos de zumbidos. Dois são constantes. Em um deles parece um som de grilo o tempo todo, mas fica mais evidente quanto mais silencioso estiver o ambiente e o outro é quase um chiado, parecido com Ruído Branco. Estou tão habituado a eles que quase não os percebo mais. Acredito que a terapia para os sons percutidos tenha me imunizado aos zumbidos presentes “dentro da minha cabeça”. Ainda há mais 2 zumbidos que são esporádicos e os percebo mais no ouvido esquerdo. Eles soam mais como um tom puro e um deles pude comparar com um aplicativo que gera tons com a forma de onda triangular e variam de 4.000 Hz e 6.000Hz. Tenho perda auditiva neurossensorial em 4.000 Hz, conforme as últimas Audiometrias que realizei.
Eu citei somente esses cinco: Assobio, lixar, mastigação, chupar dentes e percutidos, pois são os que mais sobressaíram em 42 anos convivendo com o problema. Depois de um tempo sofrendo e sem perspectiva de melhorar, fui me tornando irritável a outros estímulos. Sons específicos, pessoas com marcadores linguísticos (ok, ok, né, né, entendeu, entendeu), Sibilâncias (finais de frase com ruído de “S” muito forte) e até situações irritantes diversas, envolvendo lidar com pessoas. Todos esses, ao meu ver, são gatilhos de ‘fundo comportamental’ provocados pelo estresse e distorção causados pelo sofrimento da Misofonia, em quem vivencia o problema. Não é à toa que nos grupos de apoio, há muita irritação relatada contra as pessoas, animais ou objetos que produzem gatilhos. No meu caso, mudanças de atitude e Psicoterapias, independente do conhecimento do terapeuta sobre Misofonia, podem ajudar e até resolver, mas vai depender das habilidades do terapeuta na utilização de várias abordagens, e após descartar a presença de outros problemas médicos ou psiquiátricos. Utilizei bastante os pressupostos da TCC junto com uma terapeuta comportamental e isso me ajudou a reduzir esses episódios de aversão. Para estes gatilhos “comportamentais” considero que estou quase curado. E curado não significa que tolero quando os ouço, mas que quase nem os percebo.
Minhas considerações
É possível perceber nos parágrafos acima que para cada gatilho há um abordagem e conduta terapêutica diferente, pois, a Anamnese – que consiste no histórico de todos os sintomas narrados pelo paciente, é distinta para cada um de nós e para cada gatilho. Eu recomendo realizar essa Anamnese com Psicólogo(a) bem qualificado, pois eles têm as ferramentas mais eficientes para te ajudar a determinar o que difere para cada gatilho ao nível de sentimento/emoção e considerando traumas a situações que, às vezes, nem lembramos. Eu fui realizando esta anamnese em paralelo com uma Otorrinolaringologista, pois testes para verificar Níveis de desconforto auditivo, DPAC – Distúrbio de Processamento Auditivo Central complementam e outros possíveis problemas auditivos. Com um(a) Psiquiatra serão abordagens para avaliar outros aspectos de nossa saúde mental, como níveis de depressão, ansiedade, transtornos dissociativos presentes, etc. Com Neurologista podemos verificar algum desequilíbrio químico do nosso cérebro e presença de tumores. Vejam que é uma abordagem multidisciplinar. Tenho lido muitos relatos de Misofônicos nos grupos de apoio, onde eles reclamam do insucesso quando a consulta é direcionada somente a uma especialidade e, principalmente, quando estes profissionais não conhecem ou “nunca ouviram falar” sobre Misofonia.
Eu insisto em dizer que uma abordagem com apenas um profissional pode não ser bem sucedida pois não adiantar tentar resolver, por exemplo, aspectos emocionais e/ou comportamentais com a Terapia Cognitivo comportamental, Hipnose, Brainspotting, EMDR, Neurofeedback, Acupuntura e outros tratamentos válidos, se há a possibilidade de haver algum tipo de desequilíbrio químico no cérebro, ou outros transtornos médicos, fonoaudiológicos ou psiquiátricos, agindo em conjunto. Lembrando que a relação entre Misofonia e estes ainda é desconhecida.
Posto isso, vou completar que já tive situações extremas de ser incomodado, ter ódio, querer o mal de quem produzia sons, principalmente entre os meus 20 e 30 anos de vida, mas entendi depois que – reverberar o ódio e intolerância, independentemente de ser por causa da Misofonia ou do mundo, não ajuda, só piora os sintomas com o tempo. Sou agradecido por amadurecer com esta compreensão.
Não sou nenhum ser especial, apenas lutei e luto contra a Misofonia e não contra os sons. Contudo, nada impede que tenhamos que tomar medidas protetivas/preventivas se outros abusam do sossego alheio. O problema é quando essas medidas são a estratégia principal pois – o mundo não vai ser mais silencioso, pelo contrário.
Então além das medidas protetivas, medidas de tratamento da raiz de tudo – MISOFONIA – precisam ser levadas à sério.
Vou desenvolver estas considerações nas próximas publicações, onde vou mostrar todo o processo e o caminho que segui até chegar aqui e espero que este texto te traga novas luzes sobre como enfrentar Misofonia gatilho a gatilho. Eu torço para que todos possam tratar os problemas com a vida e com a Misofonia.
E agora, assuntos para os próximos capítulos
Após o texto ser publicado no grupo apoio e um pouco antes de fazê-lo no site antigo (18/04/2019) , iniciei um tratamento novo. Na primeira sessão, o som de um assobio não me afetou. Na segunda sessão a terapeuta mastigou, sem perceber, um doce e eu nem me incomodei. Na terceira sessão deixei, por alguns minutos, de perceber o zumbido (chiado e grilos). E tudo isso nas primeiras sessões pois estava no início deste novo tratamento.
Trata-se do Protocolo PS para o Tratamento da Misofonia com Terapia EMDR, desenvolvido pela Psicóloga Patrícia Santana. Este protocolo segue as 8 etapas da Terapia EMDR, mas são direcionadas para a Misofonia. Na publicação original eu estava na segunda Etapa. Até a publicação deste texto neste site novo já experimento semanas sem que nenhum, MAS NENHUM, gatilho me afete com relação aos sintomas de Misofonia, como afetavam antes. O assobio – o pior dos gatilhos em mim, não me afeta mais. Ainda tenho que tratar o incômodo auditivo que descrevi no tópico Os Gatilhos, mais acima.
Aos 21 dias sem Misofonia, publiquei no grupo de apoio um texto comemorando minha ida ao Circo com minha família. Naquele local todos os gatilhos possíveis e inimagináveis estavam presentes e nem me afetaram. Então, creio que estou no caminho certo. Os detalhes irei revelando nas próximas postagens, mas não difere das atitudes que venho tomando e que facilitam o uso dessas terapias, como expliquei anteriormente.
Também vai ficar para outra postagem, o processo de dessensibilização dos gatilhos percutidos que realizei, conforme citei nesta publicação.
Então aguardem os próximos capítulos.
Coragem! Vamos vencer a Misofonia.
Ex-Misofônico • Organizador da Associação Virtual Brasileira de Misofonia • Criador do site e página no Facebook da AVBM e a Knowledge Base on Misophonia • Administrador Voluntário – CRA-PA nº10954